segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Apanhados...

Curioso não dei por nada:

Ver Aqui...

"Only a Surfer Knows The Feeling..."

Correndo o risco de soar a polémico esta é uma reflexão que não quero deixar de partilhar.

Já pensaram no seguinte, se o surf não for saudável? Se o tão aclamado “stoked” não passar de um comportamento compulsivo prejudicial? Se o surf afinal não nos tornar mais capazes de enfrentar desafios? Se para alguns de nós este se tornar até num obstáculo ao nosso desenvolvimento enquanto pessoas e numa fonte de frustrações para alguns, cuja maturidade e por sua vez responsabilidade não estejam adequadamente desenvolvidas cuja vida não tem outras fontes de prazer ou interesse?

Como Psicólogo, de formação apenas, penso estar em condições de afirmar que, sem ter efectuado nenhum estudo apenas consultado alguma da ainda pouca investigação sobre a relação entre surf e mecanismos mentais, o surf provoca sensações de bem-estar, prazer e por vezes até uma posterior sensação de relaxamento, mas de duração relativamente curta dependendo de uma série de outros factores como o estilo de vida ou a personalidade do individuo.

Todos sabemos que muitos atletas podem ter performances excelentes nas modalidades que praticam, mas noutras componentes da sua vida terem enormes limitações ao nível da sua confiança, ansiedade, concentração, entre outras áreas emocionais, cognitivas e comportamentais. Isto explica-se pelo facto de estes ao longo dos anos de prática terem conseguido desenvolver estratégias específicas para o contexto de prática da modalidade, não conseguindo transferi-las para outros contextos. Tal como um individuo com um traço de ansiedade elevado, em situações sociais por exemplo, mas que na situação de prática consegue controlar a sua ansiedade de estado. Isto pode suceder porque o nível de experiência nessas outras situações não é igual e as exigências são totalmente diferentes consoante as situações e os contextos.

Outro facto em que a prática de surf poderá ser impeditiva do desenvolvimento de competências, deve-se ao facto de o surf ser uma modalidade individualista. O que numa sociedade onde são cada vez mais importantes competências como o saber trabalhar em equipa, o surf pode não ajudar. A agravar em relação a outros desportos individuais, o facto de no surf se disputar o próprio “campo” onde a modalidade se desenvolve, algo que não acontece noutros desportos individuais como a natação ou o ciclismo.

Por outro lado, o prazer gerado pela prática de surf, ou seja os momentos de êxtase, exaltação que provocam sensações de bem estar, relaxamento ou evasão tantas vezes referidos como uma das singulares características do surf,será que poderão levar a situações prejudiciais como a um conflito entre a realidade e o prazer? E se sim,isto poderá ser provocado por causas biológicas?

De facto, quando vivenciamos situações de prazer o nosso cérebro segrega um neuro-transmissor denominado de dopamina. Esta activa o nosso sistema-nervoso simpático (que regula a funções automáticas do nosso corpo como os batimentos cardíacos, a respiração ou a digestão) e pode dependendo das situações activar a segregação de outros neuro-transmissores como a adrenalina e a noradrenalina que activam o nosso corpo estando associadas a sensações de energia, boa disposição e activação extrema dos sentidos. Estes neuro-transmissores vão actuar na activação de algumas áreas cerebrais como o Cortéx Pré-Frontal e o Sistema Límbico, composto entre outras partes do cérebro pelo Hipotálamo e a Amígdala Cerebral. Estes são responsáveis pelo processamento, interpretação e memorização da experiência das nossas emoções e sentimentos mais básicos.
Deste modo, a experiência intensa de prazer provocada pela prática de surf pode estimular estes neurotransmissores e levar à memorização da sensação no córtex pré-frontal, passando existir uma associação que leva a uma sensação positiva associada à prática de surf, uma motivação. O que pode eventualmente acontecer e se pode tornar prejudicial, sendo interessante perceber se isto se verifica ou não, é o surf constituir uma dessas situações em que a exposição intensa faz aumentar os níveis de dopamina no cérebro, como no caso do consumo de drogas ou do jogo patológico. E o que no início seria apenas uma motivação pela experiência, em hipótese se poderia tornar numa reacção mal adaptativa de causa biológica. Ou seja, quando falamos em vício pelo surf, poderíamos então estar a falar de um fenómeno compulsivo, gerado por um processo semelhante ao dos comportamentos adictivos, em que o aumento dos níveis de dopamina diminui a actividade dos neurónios receptores da dopamina, por um mecanismo natural de homeoestase. Instala-se então uma tolerância ao estímulo, que neste caso seria o surf, passando a haver uma necessidade maior de produção de dopamina no cérebro, o que conduziria, para se responder a esta necessidade de dopamina, a ter que se fazer mais surf.

O que vou verificando por observação empírica dos meus comportamentos e de algumas pessoas ou jovens surfistas é que em caso de privação, como no álcool ou nas drogas, os níveis de ansiedade aumentam na ausência de surf, aumentando também a sensação de necessidade de fazer surf, de receber mais gratificação ou recompensa, o que muitas vezes vai prejudicar ou adiar a realização de outras actividades. No entanto, as alterações cerebrais, a existirem no caso do surf, provavelmente não deverão ser tão grandes como quando se trata do consumo de substâncias.

Constitui-se então uma interessante questão de investigação, que de uma forma muito simples seria: Poderá o tão romântico “stoked” do surf ser prejudicial? Haverá modificações significativas no nosso funcionamento neuronal para que possamos falar em adicção? Quais os factores de risco que levam uma prática saudável a tornar-se disfuncional? Qual o papel dos média e da indústria neste facto, ao vender, muitas vezes, um ideal já muito intoxicado pela lógica do lucro puro?

De facto, toda a euforia com o surf tem várias razões, mas há que ter em conta que pode não haver relação nenhuma entre fazer surf e ser mais feliz, no sentido pleno do termo, mais forte, confiante ou conseguir tolerar melhor alguns obstáculos na vida. O que eventualmente acontece, em pessoas com sintomas depressivos, é com a prática verificar-se a diminuição de alguns sinais de depressão ou tristeza pelo bem- estar gerado pelo surf. E o mesmo facto que leva a isto nestas pessoas, pode gerar nos indivíduos que se sintam bem consigo mesmos, a uma focalização excessiva no surf, que em situações e contextos exigentes os faz desistir de ultrapassar o obstáculo e preferir o “ócio” que o surf proporciona. Seria, então, interessante perceber o que leva a uma situação ou a outra, sendo possível lançar algumas hipóteses, como a falta de maturação da personalidade, ou a ausência de outros tipos de interesses ou estímulos, ou uma sobre-valorização da actividade, que em coordenação com o processo descrito em cima pode levar a situações de dependência.

Eu pessoalmente, e como se pode ver, sou fascinado por este potencial do surf, interessando-me por tentar perceber que efeitos tem o surf sobre nós e procurando compreender os fenómenos que levam a afirmações como as de Nat Yong, Shaun Thompson e tantos outros, e a slogans como os da Billabong. Tem que existir uma explicação racional e científica para o efeito poético do “stoked” , mas simultaneamente ao pensar nisto não posso deixar de levantar o véu responsável da reflexão moral sobre o assunto e do prejuízo que isto pode envolver, caso se possa chamar de dependência.

Assumo que este texto pode sugerir incoerência, sobretudo a quem me conhece, mas compreenda-se que me assumo também, e apesar de tudo o que já disse, como um viciado. Não estando, deste modo em negação e depois de muita introspecção, estou consciente da minha dependência, mas escolho conscientemente continuar agarrado a esta possível dependência, mas na forma poética e de contra-cultura, hoje em dia e em Portugal, ainda tão pouco compreendida. Pois, caso o surf se possa classificar com potencial de dependência, esta forma poética será a única forma que eu vejo de dependência “saudável”.

Autoria: André Falcão, 2010