sábado, 3 de abril de 2010

O Gipsy do mar


Março de 2010,
10:30 da manhã,
Carcavelos, parque da Pastorinha,
Céu limpo com bastante sol,
Brisa de norte muito fraca,
Ondas de 0,5m sets maiores, com ondulação de 3,4 metros de noroeste com período 12,
Maré a encher por mais umas quatro horas,
Crowd suportável.

Isto podia ser uma estrofe de um poema qualquer, pois estas condições soam mesmo a poesia, mas não...
Servem estas palavras apenas para contextualizar uma pequena conversa verídica, entre mim e um jovem de etnia cigana com os seus 10 a 15 anos de idade.
O jovem abordou-me ao cimo das escadas que dão acesso à praia, enquanto eu, sentado e distraído, me entretia nas minhas leituras de mar.
-Sabe, senhor, que encontrei um tesouro nesta praia!? - disse o rapaz, com um à vontade desconcertante e de certa forma provocador.
Fui, assim, repentinamente resgatado das minhas imagéticas previsões de manobras nas ondas que enrolavam diante de nós, e respondi de forma distante, pensando logo no último local onde tinha visto a minha carteira.
-Ai foi??
-Foi! Foi, enquanto passeava pela areia, mas não sei se este tesouro vale alguma coisa!- continuou ele.
Respondi num tom desinteressado, do tipo "calha-me com cada maluco..."
-Se vale ou não alguma coisa, tu é que sabes...
-E o senhor não me poderá dizer? Provavelmente, não posso fazer nada com ele. - insistiu o rapaz num tom grave, irrevogável.
-Não, não te sei dizer. Olha, o melhor será ofereceres o teu tesouro a quem lhe dê melhor uso. - continuei desconfiado, tentando despachar o jovem.
Nisto o jovem cigano afastou-se, colocou-se vestido debaixo do chuveiro de praia e abriu a água, ficando literalmente encharcado.
Não consegui evitar uma gargalhada. Se o objectivo do jovem era captar a minha a atenção e derrubar as minhas defesas, tinha acabado de atingir o seu objectivo.
Sacudiu-se e aproximou-se novamente...
Desta vez já olhando para ele, perguntei-lhe sorrindo:
-Então e agora não ficarás com frio?
Encolheu os ombros dizendo:
-Não me interessa, esta minha descoberta deu-me vontade de fazer isto. Não lhe sabe bem fazer o que lhe apetece?
Já preparado para lhe responder, argumentando algo sobre o que fazer, como fazer e onde fazer; decidido a partilhar os meus pensamentos sobre o que está correcto e o que está errado, não me saiu nada. Nem uma palavra consegui articular.
Senti-me atolado, preso em regras sociais...e apenas exprimi...um amordaçado:
-Humm...!
E ele perguntou com uma lucidez crua, quase incriminatória, pondo a descoberto os meus preconceitos:
- Há pessoas que pensam logo que sou cigano, o senhor é dessas pessoas?
-Não tem mal nenhum ser cigano, um cigano não é nem melhor, nem pior que outra pessoa qualquer. - defendi-me num tom ridiculo, de tão politicamente correcto que tentei ser.
-Pois, eu sou um "senhor" como você.
Concordei acenando com a cabeça e ali ficámos uns instantes em silêncio, olhando o mar.
Já completamente surdo com aquele silêncio, fiz-lhe algumas perguntas sobre se estava de férias, se tinha vindo sozinho para a praia, ao que me respondia de forma curta e com indiferença. Algo monopolizava o seu pensamento e o inquietava tornando a sua presença desconfortável, até que perguntou:
-Não veio para fazer surf, senhor?
-Sim.
-Então, e não vai? - questionou, não se apercebendo que ele era a razão de eu ainda ali estar.
-Vou, mas agora só depois de mostrares o tesouro que descobriste. - respondi.
-O tesouro que descobri não dá para lhe mostrar e não lhe sei dizer que valor terá.
Pensei novamente, que o cigano me estava a dar "baile".
-Então...? - insisti.
E o rapaz que há pouco me parecia a personificação da liberdade, respondeu:

-Quando vinha na praia, vi um senhor numa onda e senti vontade de fazer o mesmo que ele... Mas provavelmente nunca o poderei fazer.
Reconheci de imediato aquele brilho que o tesouro dos sonhos desenha nos olhos.
Autoria: André Falcão, 2010