segunda-feira, 9 de março de 2009

Uma Tarde em Quiaios


Ao longo da minha vida tenho conhecido algumas pessoas a partir de curiosos acasos. Coincidências que por vezes resultaram em grandes e importantes amizades. Recordo várias situações deste género que provam que o mundo é realmente um local interessante e que o surf o torna ainda mais mágico.
Uma partilha de wax com uma pessoa desconhecida num parque de estacionamento, deriva numa amizade quando nos apercebemos que um amigo comum nos esperava a ambos no outside. O surfar com alguém que, pela sua postura descontraída e informal, não imaginaria, uns meses depois, encontrar como Professor Universitário numa das mais conservadoras e formais instituições de ensino superior por onde passei. Muitas têm sido as situações curiosas que, pela sua improbabilidade, criam empatia e me aproximam destas pessoas sempre com um denominador comum, o surf.
Uma dessas fantásticas coincidências aconteceu há já algum tempo e, apesar de não ter resultado numa amizade, foi de tal forma irreal que a recordo vivamente.
Estávamos de regresso, o fim-de-semana prolongado estava já no seu epílogo e precisava de fazer uma pausa na condução. Naturalmente o trânsito nestas alturas complica-se, sobretudo para quem prefere a paisagem das estradas nacionais, à monotonia das auto-estradas. Era um dos últimos fins-de-semana amenos do ano e havia que aproveitar, antes que as noites frias de Dezembro e Janeiro transformassem a pequena carrinha num verdadeiro frigorífico para quem dorme lá dentro, mesmo estando bem acompanhado.
O destino escolhido para este fim de semana de “vá para fora cá dentro” tinha sido a Cidade Invicta, com paragem na ida pela Figueira da Foz para a respectiva dormida e, de manhã, visita de reconhecimento com uma eventual surfada pelas praias de Quiaios. Estas eram praias ainda desconhecidas para nós mas que estavam há já algum tempo na lista de destinos obrigatórios a visitar na nossa costa.
Como a ondulação se previa fraca e tínhamos tempo, este era o momento ideal para lá ir. Mas teria que ser de manhã! Afinal o mote para esta visita tinha sido dado tempos antes, após a leitura de uma crónica intitulada “Uma Manhã em Quiaios” que me tinha ficado sempre na memória. No entanto, a magia veio a acontecer não de manhã, mas sim à tarde!

Ali estávamos nós finalmente, como estrangeiros no nosso próprio país com o olhar virgem que os caracteriza, a observar a “serra que lhe cai quase a pique” e que nos oferecia “a paisagem de surf mais bonita do centro de Portugal” e as dunas que realmente “lhe dão um sabor de qualquer coisa de selvagem e primordial”. Tudo correspondia exactamente à descrição feita na crónica, menos o mar que correspondia apenas à atmosfera calma do lugar. Seguimos então viagem rumo ao norte para passar o resto do fim-de-semana.

Mas agora no regresso, precisávamos mesmo de encostar! Apesar da pressão para regressar a Lisboa e voltar a governar a vida para as rotinas da semana, apetecia fazer mais surf antes de chegar. Assim, numa decisão relâmpago, decidimos que valia a pena voltar a ver como estava o mar em Quiaios.
Como dias antes, o ambiente continuava calmo, tarde amena, pouco vento, bastante sol. Decidimos arrumar o carro, desta vez mais para o lado norte, talvez aliciados pelas semelhanças com a Côte Sauvage, a norte de Hossegor. Parámos ao lado dos únicos carros que ali estavam, uma carrinha azul e um carro vermelho, se não me falha a memória. Enquanto transpunhamos as dunas comentávamos o quanto seria engraçado que um dos carros fosse do surfista e viajante, autor da bonita crónica sobre aquele exacto local, e que isso significasse que ele estaria ali a surfar.
Ultrapassadas as dunas, avistámos apenas dois surfistas na água e na areia duas senhoras sentadas observando-os atentamente a surfar uma simpática direita que um deles apanhava com bastante facilidade num longboard. Apesar da distância a que nos encontrávamos, dava para perceber que era um pranchão de madeira. Lembrei-me imediatamente que podia ser uma prancha feita na “Loja do Mestre André”.
Decidi vestir o fato, agarrar no meu longboard e juntar-me a eles, entusiasmado com a direita e com a minha dúvida. À medida que remava e me aproximava a dúvida deu lugar à certeza, era mesmo ele! Ali, precisamente ali, em Quiaios, onde, segundo a crónica, ele viveu uma manhã na qual “as ondas eram mesmo boas, tubos e tudo” e na qual “trinta meias testemunhas” de uma colónia de férias podiam provar que o viram fazer surf com mais prazer que nunca.
Condicionado pelos hábitos desconfiados, próprios de quem surfa nos spots perto da capital, aproximei-me do pico timidamente para não ser recebido com olhares de soslaio, afinal, eles surfavam sozinhos o melhor pico das redondezas e eu não passava de um estranho. Sou então surpreendido com uma simpática saudação, ele correspondeu exactamente à imagem que construí dele ao ler as suas crónicas. Falámos sobre aquelas praias e as suas ondas, contei-lhe que estava de passagem, mas confesso que não tive coragem de lhe falar da minha primeira paragem dias antes por ali, e do seu motivo. Já cá fora, no parque de estacionamento, pude apurar que ele não surfava regularmente de longboard, apenas nos dias mais pequenos, sorte a minha que sou fervoroso adepto e praticante desta vertente do surf. Conversámos sobre o pranchão de balsa, lindíssimo e espantosamente leve. Era realmente uma obra prima do americano Andres Kozminski, shaper de pranchas de balsa a viver no Equador há bastantes anos e que serviu de tema a mais um dos seus textos, com o título “Na Loja do Mestre André”. Será Quiaios um lugar mágico?

Naquela tarde não apareceu mais ninguém em Quiaios, portanto, não tínhamos sequer as “meias testemunhas” para provar que aquela tarde de surf existiu. A verdade é que nunca contámos este encontro com ele a ninguém, nem mesmo aos nossos amigos mais próximos, pois as circunstâncias que o rodearam foram demasiado improváveis. Pensariam eles logo: Surfaste só com ele e mais um amigo em Quiaios, logo em Quiaios e de longboard? Pois sim... Naqueles momentos sentimos que toda aquela situação estava invertida, estávamos a viver as crónicas do viajante na sua própria “casa” e era ele que se estava a despedir de nós com um “Boa viagem!”. Apeteceu-me desejar-lhe “Igualmente!”, pois tinha a certeza que apesar de estar na sua terra natal, ele não permaneceria ali por muito tempo.

O pouco que conversámos deu para perceber que se trata de uma pessoa simples que, habituado ao papel nómada do viajante e a ser recebido em locais diferentes e culturalmente distantes das suas origens, aprendeu a receber os de fora na terra e sobretudo nas ondas que o viram crescer, com igual hospitalidade. Pareceu-me alguém carregado de autenticidade, sem qualquer maneirismo de personalidade conhecida, uma verdadeira lição de humildade, simplicidade e, com toda a certeza, tolerância.
Encontrar esta figura incontornável no panorama do “free” surf nacional que, de uma forma simples e pura, cria preciosas reflexões e informações acerca dos lugares, das gentes e das ondas que povoam o nosso mundo, foi para mim uma dessas coincidências improváveis que só o surf proporciona.
Foi com uma “Carta do Norte” escrita no ano de 1997 (salvo erro numa edição comemorativa dos 10 anos de existência da Surf Portugal) que comecei a seguir este autor surfista viajante e desde aí me tenho apercebido da sua contribuição para a manutenção de um espirito, de uma alma ou mesmo de um imaginário do surf associado a aventura, liberdade e busca, que toda uma industria que encontrou aqui um enorme filão teima em fazer desaparecer nas novas gerações de surfistas.
Eu, por mim, anseio pela próxima partida da vida, quero continuar a crescer com algumas das pessoas fantásticas que habitam este mundo.


Autoria: André Falcão, 2009